domingo, 29 de novembro de 2015

Em Cuba não pretendemos governar por maiorias, pretendemos governar por convicção e consenso

O doutor Jesús Pastor García Brigos (Havana 1951) é físico de formação que depois de uma longa evolução intelectual se converteu em estudioso da filosofia, sociologia e das ciências políticas. Atualmente é estudioso do Instituto de Filosofia de Havana e trabalha com temas relacionados com o materialismo histórico, a sociedade cubana e participa em diferentes projetos investigativos, fundamentalmente dedicados à esfera econômica e seu vínculo com a política da ilha caribenha. Pudemos conversar com ele sobre a problemática da democracia e participação sociopolítica em Cuba, assim como os desafios atuais para o povo cubano depois de mais de 10 anos do "período especial" e, sobretudo, de 45 anos do bloqueio imperialista.
Díaz-Canel, Vice-presidente do Conselho de Estado, vota nas eleições municipais de Cuba.

-Quando se pergunta a José Pastor Garcia Brigos o que pensa sobre as multiplas classificações que se faz de seu país na maioria da imprensa internacional hegemônica (como o de "ditadura comunista") responde imediatamente:

Temos aqui um processo muito rico, muito complexo, democrático por suas formas de participação e eleição, mas também temos nossas deficiências com respeito ao que aspiramos e necessitamos. Ainda assim, estamos insatisfeitos com os mecanismos de consulta e participação porque a revolução é um processo de eterna insatisfação. O dia em que um revolucionário fica completamente satisfeito, deixa de ser revolucionário. Entretanto, não pensamos que alguém tenha o direito de classificar nosso processo como "ditatorial" ou "não participativo", nada disso.

-E quando tento acentuar a existência de um partido único em Cuba, o que parece pouco incompatível com as formas que se deveria admitir uma experiência socialista, participativa e pluralista, o filosofo insiste em me lembrar brevemente o sistema de representação política existente em Cuba, primeira base para um discussão sã e fraternal sobre o regime político da maior ilha do Caribe. Primeiro, José Pastor enfatiza a importância do nível municipal na ilha, como escala de participação política e poder popular, isso inclusive no momento de eleger os membros da Assembleia Popular a nível nacional (o parlamento cubano):

A Assembleia popular deve ser composta até a metade por delegados eleitos a nível municipal. Quem são esses delegados? São propostos em reuniões abertas e públicas por seus vizinhos, os habitantes do bairro. Qualquer pessoa, sem restrição alguma pode se apresentar como candidato. O Partido não indica ninguém nem tem qualquer papel nas nomeações, nem na eleição de qualquer desses delegados. Sua única missão, através de seus militantes é velar para que se respeite a legalidade do processo no sentido de cuidar que no bairro ninguém se coloque a fazer campanha contrária ou favorável a alguém. Porque aqui é proibido fazer campanha eleitoral.

-Mas nesse caso e se as eleições são tão democráticas e abertas, é assombroso que não exista algum "dissidente" (ou alguém descontente com a gestão governamental atual) presente na Assembleia Nacional. Aqui está a explicação de José Pastor:

Isso é precisamente um bom exemplo. Não é nada mais nem nada menos da prova da pouca força e peso que a "dissidência" tem na ilha: jamais saiu nessas assembleias dos bairros um candidato que seja de grupos "dissidentes". E deve se considerar que é muito fácil ser eleito nessas assembleias: as vezes são assembleias de 100 pessoas e dessas 100 basta que 30 votem para um candidato para que ele saia como candidato dessa assembleia. E a nível nacional são mais de 33.000 delegados de circunscrições que são eleitos! Essas eleições do poder popular são celebradas a cada dois anos e meio desde 1976. Ou seja, foram candidatos a delegado cerca de 300.000 pessoas e não houve nenhum proposto pela "dissidência".

-Surge outra pergunta: se metade dos delegados dessa Assembleia nacional é composta por delegados eleitos a nível municipal, e a outra metade? São nomeados pelo Partido Comunista?

A outra metade da assembleia é composta por comissões de candidatura. Nessas comissões também não está presente o Partido Comunista. Preside essa comissão a Central de Trabalhadores, que é a união de todos os sindicatos do país. Também fazem parte dessa comissão os Comitês de Defesa da Revolução (CDRs), a Federação de Mulheres Cubanas, a Federação de Estudantes, a Associação Nacional de Pequenos Agricultores, de camponeses, etc... São as organizações sociais essenciais no processo no político que o país tem vivido. Essas diversas organizações, a partir da consulta de seus membros, indicam candidatos. Essas candidaturas são levadas à assembleia já eleita que aprova esses candidatos. E depois esses candidatos vão às eleições diretas. Aí encontramos os trabalhadores destacados, estudantes, camponeses, líderes religiosos, esportistas... etc. Nesse processo de consulta obviamente o Partido é consultado. Me parece normal porque se trata de um dos principais atores do país, com uma autoridade legitimada sistematicamente, mas no final a decisão é sempre da Assembleia Municipal, isto é, as pessoas eleitas em cada bairro, de forma pública e completamente aberta. E é graças a esse mecanismo de eleição e consulta que nossa Assembleia Nacional reflete, ou pelo se aproxima, da estrutura real de nossa sociedade.

- E em relação a Assembleia nacional: quais são seus direitos, poderes e atribuições concretas?

A Assembleia nacional é a máxima instância de poder estatal de nossa sociedade, com funções legislativas e também constitucionais em alguns aspectos. Outras mudanças constitucionais, de acordo com nossa lei, devem ser feitas por referendum. A Assembleia aprova leis, mas inclusive aqui o processo é mais complexo: o processo de aprovação de leis em Cuba é sui generis. Em 1975 ocorre o Primeiro Congresso do Partido que toma a decisão de institucionalizar formas de poder popular que eram experimentadas na região de Matanzas desde 1974. Em 1986, se introduzem mudanças que se iniciam com a criação dos Conselhos Populares, que em 1992 se estendem para todo o país e em 2002 são definitivamente regulados por uma lei. Esse acontecimento de introdução dos conselhos populares é bastante ilustrativo. Se trata de experimentar durante anos até se legalizar definitivamente. Antes de aprovar essa lei se elaboraram 11 projetos, discutidos por deputados, especialistas (eu inclusive participei dessas discussões), circunscrições... Assim se aprovam as leis em Cuba. Assim aconteceu o mesmo com as leis sobre as cooperativas agrícolas, que foram discutidas durante anos com os próprios camponeses. Isso pode indicar o porquê da assembleia popular votar costumeiramente por unânimidade. Por que? Porque essas leis são resultado de numerosas discussões, é o ato final e as vezes certo. Votar no plenário é um ato bastante formal. E mesmo nessa Assembleia o modo de discussão é o mais amplo possível, com o objetivo de buscar consenso antes de submeter algo à votação. Em Cuba não pretendemos governar por maiorias, pretendemos governar por convicção!

-A partir desse enfoque e com base em sua experiência há de se renovar a visão unilateral e tradicional que se possui sobre o Estado moderno?


A divisão do Estado em três poderes (legislativo, executivo e judiciário) tem sido funcional para as sociedades capitalistas, eu diria que é a forma perfeita da democracia liberal burguesa. Mas, para nós, o sistema de divisão de poderes deixa de ser funcional: o nosso deputado não pode ser um simples encarregado de decisões legislativas. O nosso Deputado está e tem de estar em estreito contato com a população para fazer com que um indivíduo participe das decisões e das responsabilidades que essa decisão se associa. Nosso sistema não está baseado na divisão de poderes, ainda que de fato existam diferenças de funções: um Ministro não tem a mesma função de um Deputado e há um órgão de poder que é a Assembleia Nacional bem diferente do Conselho de Ministros, que é o Governo da Nação. Entretanto, quando desce ao nível das províncias é mais complicado porque a assembleia provincial é ao mesmo tempo o órgão de poder (com gente eleita) e governo. E ali começam também as dificuldades de ordem prática. Porque governar é tomar decisões administrativas diárias, mas governar no socialismo tem de ser também favorecer a participação da população. E é um tema muito importante, mas pouco desenvolvido entre nós a nível teórico e que traz muitas complicações na prática. E essa problematica tem implicações até para o papel do Partido Comunista na sociedade cubana. Porque o Partido em nossa sociedade é o máximo dirigente político e formalmente é um instância distinta do Estado, pois suas decisões não são obrigatórias para o conjunto da sociedade, mas também é um Partido único, é o Partido que está no poder e então não é possível dizer que esse Partido não administra. O que se deve aprofundar é como o Partido toma parte das decisões administrativas. Isso é um desafio teórico e também prático para nós.

-"Partido único no poder" não seria justamente onde está a causa da grande contradição e também a causa de numerosas críticas (a maioria das vezes abertamente contrarrevolucionárias e direitistas) que existem contra Cuba no mundo? Desde a trincheira da esquerda radical eu pensei imediatamente nos maravilhosos textos de Rosa Luxemburgo sobre a necessária e indispensável autonomia social do proletariado e sua crítica implacável às primeiras características da burocratização na Russia revolucionária. Isso é, um movimento revolucionário vitorioso, mas muito isolado e assediado pelo capitalismo (como na Rússia em 1917 ou em Cuba em 1959 com todas as diferenças) pode ir removendo o poder popular dos trabalhadores organizados em proveito de um Partido-Estado. Jesus Pastor não compartilha dessa visão ao analisar a situação cubana.

Aqui está o que disse e adiantou Marx e depois desenvolveu Lênin. Marx dizia que a transformação socialista que vinha tinha de ser a devolução à sociedade civil do que tinha sido arrebatado pelo Estado. Encontramos já em Marx e Engels a ideia de que o Estado tal como o conhecemos até hoje desaparecerá, se extinguirá: "Desaparecerá o governo dos homens para passarmos a administração das coisas". Essa mesma ideia retoma Rosa Luxemburgo. Mas cuidado, o esquema não é tão simples e nunca Engels expressou de maneira tão esquemática. Lênin, depois, na prática, desenvolveu um pouco mais: se trata de um governo que cada vez vai sendo menos uma expressão e poderes hierarquicos e ao mesmo tempo uma administração que cada vez mais é menos um simples controle de recursos para ser controle social. Essa é a interrelação dialética onde ambos vão mudando suas qualidades. O governo não deixa de ser poder, mas passa de um poder político a um poder social...

-Se isso é assim, não é possível afirmar justamente que em Cuba a sociedade civil (conceito utilizado por Gramsci) se encontra muito restrita pelo imenso peso do Estado e do Partido?


Para mim, depois que começou a Revolução socialista deixou de ser válido o conceito de sociedade civil. Gramsci usou esse conceito, mas não tanto Lênin e Marx. Esses dois últimos falavam mais de "Ditadura revolucionária do proletariado". A essência desse conceito é que cada esfera das atividades humanas se transforma. Em termos de "sociedade Civil" significa que a sociedade civil adquire características do Estado e o Estado se "dissolve" em coisas que eram a sociedade civil. Mas ao final deixam de ser Estado e sociedade civil no sentido tradicional. Em Cuba, nossos Comitês de Defesa da Revolução, nossas Federações, nossa Central de trabalhadores são da sociedade civil no sentido tradicional, mas ao mesmo tempo participam no Estado. Retoma atualidade uma frase pouco conhecida de Lênin que falava das "formas da luta de classe" do proletariado no poder: quando o proletariado conquista o poder, não termina sua luta, mas a continua sobre novas formas. Há a luta contra o imperialismo, com o capital, etc... Mas Lênin fala inclusive da "luta de classe do proletariado sobre si mesmo". Do que se trata? Da disciplina para transformar-se. O que "Che" Guevara qualificava como busca do "Homem Novo". Estas formas de luta de classe são chaves para entender a dialética de um Estado que tem de se fortalecer para extinguir-se, isto é, não se tornando cada vez mais burocrático e poderoso, mas envolvendo cada vez mais a sociedade em sua própria vida.

-Voltando a realidade cubana atual, do ano de 2005.  Oficialmente, se saiu faz poucos meses do "período especial". que começou no início dos anos noventa depois da queda da URSS. Hoje em Cuba, depois de mais de dez anos de economia parcialmente dolarizada, de vários períodos de grandes penúrias, de abertura a capitais internacionais e ao turismo globalizado, e, principalmente, depois de 40 anos do bloqueio imperialista estadunidense: Seria possível dizer que Cuba, sob tante pressão e assédio, teve que passar da "luta de classes revolucionária" a uma difícil e paradoxa "luta pelo dólar", sem, entretanto, encontrar o famoso "homem novo" anunciado por "Che" Guevara?

A questão é que a "luta pelo dólar" faz parte da luta de classes, de sua expressão econômica. Esse processo de avanço de uma nova disciplina para um homem novo está enfrentando desafios que são produto inevitável desse vínculo entre o desenvolvimento da Revolução cubana com o desenvolvimento do mundo. Indiscutivelmente, Cuba está enfrentando numerosos obstáculos, essa tarefa está sendo mais difícil. Além disso, devemos frisar que é muito diferente a disponibilidade de recursos do exterior, a disponibilidade de mercado do exterior, a disponibilidade de tecnologia do exterior, de "uma abertura ao Capital". São duas coisas diferentes e aqui existe um problema conceitual e também prático. A nível conceitual recordo que o Capital não é somente o dinheiro. O dinheiro é uma das expressões do Capital, mas o Capital é um sistema de relações sociais. E esse sistema de relações passa por muito mais coisas. Que nós introduzimos o dólar em nossa economia é verdade, que nós temos relações como Capital mundial também é verdade. Mas para nós o desafio é seguir avançando no contexto para a nova essência socialista que estamos construindo. É um desafio grandioso, daí sua importância política, da ideologia, dos valores que devemos organizar, para poder conduzir essa abertura econômica. Isso foi o que tratou de fazer Lênin en sua época com as concessões aos grandes capitalistas estrangeiros, com a Nova Política Econômica. Mas, como dizia ele: capitalismo de Estado mais poder dos soviets, estamos dentro do socialismo. Sim, depois vieram todas as deformações, os soviets degeneraram, deixaram de ser o que Lênin via neles, etc.. Nós teremos de enfrentar - em alguma medida - a esses desafios. Entretanto, hoje em dia praticamente toda a indústria turística se financia maioritariamente com base no financiamento cubano.

-Desde essa perspectiva, o questionamento é quanto as formas de propriedade e a avaliação se em Cuba o padrão de acumulação estatal permite uma socialização efetiva e democrática dos recursos e riquezas geradas pela economia nacional e seus trabalhadores.


Bem, novamente devemos ter cuidado com os conceitos que estamos utilizando e sobre o conceito de "acumulação social": também há acumulação social sob o capitalismo! Alguns dizer que o socialismo é a propriedade social dos meios de produção.... Não, o socialismo é alcançar a propriedade socialista sobre os meios de produção. A pergunta central é a do Estado: Estado capitalista, Estado burocrático(1) ou Estado socialista como em Cuba. Outro exemplo de confusão teórica: comumente se fala de "construção do socialismo". Mas isso é um erro por que isso leva a pensar que se pode construir o socialismo por etapas, uma concepção "etapista". Não, Marx e Engels falavam de "revolução permanente". Marx e Engels usavam o termo "socialismo" ou "comunismo" de maneira indistinta e não como fases distintas.(2) Se trata de um processo de transformação, como as ideias de Marx e Lênin foram seguindo elas mesmas um processo de elaboração. Eles eram dialéticos. Eles não nos podem dar uma resposta mágica, mas sim nos podem ajudar a compreender a essência do capitalismo e do socialismo, como processo emancipador do indivíduo: devolver ao indivíduo a possibilidade de ser dono de sua própria vida social. A teoria segue sendo muito importante para a prática e deve-se retomar todos esses textos clássicos do marxismo. Inclusive há pequenas coisas que para mim tem importância porque em período de efervescência como hoje na América Latina também há que tomar cuidado com o oportunismo. Um exemplo: alguns companheiros invocam agora muito o "socialismo do século XXI". Eu prefiro falar do "socialismo no século XXI", porque de outra forma parece esquecer que todo o anterior não tem valor. Outro exemplo: muitos falam de "democracia participativa". Mas "democracia participativa" se o poder do capital é mantido, a participação vai estar sempre muito limitada...

-E para terminar esse diálogo, pergunto a Jesús Pastor o que vai acontecer com cuba quando seu líder máximo, o comandante Fidel Castro faleça. O filosofo responde sem dúvida:

Fidel é um dirigente de uma envergadura excepcional. Se pode dizer dele o mesmo do que Engels de Marx: é um gênio, os demais, no máximo... homens de talento. Essa Revolução não pode ser a mesma sem sua presença física, porque ele têm uma estatura que faz com que o dirigente que está mais próximo do comandante esteja a anos luz de distância... Esse é o grande privilégio histórico que temos tido todos esses anos. Não obstante, com o povo que temos a continuidade da revolução está garantida. Porque a Revolução Cubana foi e é uma criação da Nação cubana. Entretanto, é indiscutível que não pode ser igual sem gente excepcional como Fidel Castro. Quando chegue esse momento inevitável e doloroso, as forças que temos desenvolvido nesses mais de quarenta e cinco anos, continuidade dos mais de cem que temos lutado defendendo nossa independência, garantiram a continuidade do processo, sob essas novas condições, para seguir nosso caminho revolucionário comunista.

De Franck Gaudichaud em Rebelión, 3 de Dezembro de 2005.

Tradução: Fuzil Contra Fuzil


Observações:

A conversação contém elementos aos que o leitor mais atento deve fazer ressalvas. Nos parece que concepções "Revolução Permante", "etapismo" e "Estado burocrático" são equivocadas e insuficientes para explicar o que elas propõem.

(1)
O entrevistado ao tratar de "Estado burocrático" ou "degeneração dos soviets" sem maiores explicações, se utiliza de abordagem que acarreta em grosseira simplificação do processo histórico.

(2) No mesmo sentido, no trecho em que trata de "revolução permanente" e critica o que chama de "etapismo", parece esquecer da necessidade de diferenciar as fases da sociedade onde ainda há classes, luta de classes e seus resquícios, mas onde o proletariado assumiu o poder, o socialismo; da sociedade onde a luta de classes não mais existe, onde há um altíssimo grau de desenvolvimento das forças produtivas e as principais contradições sociais já não mais existem, o comunismo.

Apesar dessas limitações, publicamos a entrevista  pelo fato de trazer explicações adicionais sobre o processo de participação política em Cuba.

Equipe do Fuzil contra Fuzil.


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